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Quem sou eu, e o propósito deste blog.

Sou Gustavo Leite Jacovelli, um estudante do quarto ano de medicina na FMRP-USP especialmente interessado em medicina baseada em evidências, filosofia da ciência e clínica geral.  "A medicina é a ciência de incerteza e a arte da probabilidade", disse o dr. William Osler em idos de 1800, ilustrando a natural imprevisibilidade de tudo que se relaciona à saúde (e à vida ;) ).  Muitas vezes, porém, nos esquecemos desse aspecto inerente à arte médica; nesses momentos, não entendemos  - "por que esse medicamento não tá ajudando?", "como é possível que ele tenha melhorado da noite pro dia?", "como ela nunca se expôs a fatores de risco e desenvolveu essa doença?", etc. Comumente, além disso, esquecemo-nos de que os conceitos que possuímos, estudamos e praticamos decorrem de estudos - começando com experimentais, até chegar aos ensaios clínicos, ou, às vezes, de estudos observacionais.  Tais estudos, apesar de serem a maneira mais fidedigna que temos de d

Por que exercitar o pensamento probabilístico em medicina?

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     No post anterior, apresentamos o conceito de pensamento probabilístico Bayesiano em medicina.  Em essência, trata-se do método mais seguro de realizar estimativas sobre prevalência de doenças, efeito de testes diagnósticos, e o impacto das condutas médicas. Em medicina, afinal, lidamos com sistemas complexos, que não seguem regras fixas que nos permitem saber, com certeza, se uma doença de fato está presente ou se um tratamento é, certamente, útil numa dada situação - precisamos trabalhar com probabilidades para, a partir delas, tomar as condutas mais adequadas a cada momento e pessoa. O pensamento probabilístico não se trata, porém, do estado de funcionamento natural da mente humana; assim, quando não mantemos um olhar atento para nossos vieses cognitivos , e não exercitamos o pensar probabilístico, caímos facilmente em diversas armadilhas durante a prática médica: Superestimamos a probabilidade pré-teste das doenças;  Valorizamos excessivamente testes ou achados que corroboram

As Bases do Pensamento Bayesiano em Medicina.

Iniciamos aqui uma série de posts destinadas a explicar o que é o "pensamento probabilístico", ou "Bayesiano", em medicina, e como impacta em quatro momentos essenciais da prática: o exame físico; o diagnóstico mediante uso de métodos complementares; o tratamento; e a interpretação crítica de trabalhos científicos. O pensamento Bayesiano.      No século XVIII, na Inglaterra, o reverendo Bayes descreveu o conceito de probabilidade condicional: em essência, a ideia de que, partindo de uma probabilidade pré-teste já existente, com a aquisição de novas evidências (com a aplicação de um teste diagnóstico, por exemplo), obtemos uma probabilidade pós-teste . A fim de esclarecer como o teorema se aplica à medicina, pense no seguinte caso: “Um paciente completamente assintomático vai ao médico para consulta rotineira; no exame físico, o médico detecta anormalidade tipicamente presente nos portadores de uma dada doença; inquieto, questiona-se ‘será que isso é normal, sendo q

Sobre cloroquina e sopa de galinha.

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  Iniciamos o post de hoje com uma pergunta: Todas as hipóteses devem ser testadas cientificamente? A resposta (penso, e espero te convencer) é negativa . Nem todas as hipóteses, associações, ideias que pensamos devem - merecem - ser analisadas por estudos científicos aprofundados. Há alguns motivos principais para tal. Em primeiro lugar, algumas hipóteses têm probabilidade pré-teste de serem verdadeira muito baixa - ou seja, a probabilidade de que a ideia seja verdadeira antes de que um estudo a analise é ínfima. Tal probabilidade é determinada sobretudo por plausibilidade biológica (“faz sentido biológico” que um antibiótico mate bactérias?) e pelo conjunto de evidências prévio (os resultados de estudos prévios apoiam essa nova hipótese?). Para entender as implicações disso, suponha que um estudo avalie uma ideia de baixa probabilidade pré-teste [que tal hidroxicloroquina em pacientes com COVID-19?] e tenha resultado positivo. A chance de que esse resultado seja falso-positivo será m

Estudos clínicos de não-inferioridade - 3/3.

Nos posts anteriores, vimos o conceito de estudo clínico de não-inferioridade, que visam a testar se um novo medicamento possui efeito “não-inferior” a outro já aprovado para dada condição. Essa “não-inferioridade” (pequena perda do benefício principal) seria compensada por algumas vantagens a mais, como preço menor ou menos efeitos colaterais. Além disso, vimos que aspectos metodológicos desse tipo de estudo merecem atenção. Agora, vamos pensar o caso da apendicite . Recentemente, publicou-se estudo de não-inferioridade que comparou o manejo cirúrgico da apendicite ao tratamento apenas com antibióticos.  Em resumo, tratou-se de estudo não-randomizado (deu-se, aos responsáveis, a opção de escolher o manejo), que comparou tais opções de manejo da apendicite não-complicada em crianças entre 7 e 17 anos. O estudo avaliou: dias “perdidos” em decorrência do tratamento da apendicite; e taxa de sucesso do manejo não-operatório (proporção de pacientes tratados clinicamente que, após um ano, n